Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração: Subjetivo ou Comunitário?


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Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração” (Cl 3.15). Essa instrução do apóstolo Paulo tem muitas vezes sido mal compreendida. Alguns interpretam no sentido de que quando tomamos uma decisão, o nosso coração tem que ficar em paz e se isso acontecer, quer dizer que a nossa decisão foi acertada. Mas será que é isso que o texto está ensinando?!
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Essa proposta da paz interna é favorecida pela Nova Tradução Linguagem de Hoje, que traduz o texto da seguinte forma: “E que a paz que Cristo dá dirija vocês nas suas decisões, pois foi para essa paz que Deus os chamou a fim de formarem um só corpo. E sejam agradecidos.” (Colossenses 3.15, NTLH).
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A outra interpretação desse texto, considera que a paz à qual Paulo está se referindo é a paz entre os irmãos. Ou seja, nesse sentido, o que tem que funcionar como juiz em nosso coração é não uma paz subjetiva, mas aquilo que melhor promove a paz entre cristãos. Essa interpretação é favorecida na Nova Versão Internacional: “Que a paz de Cristo seja o juiz em seu coração, visto que vocês foram chamados para viver em paz, como membros de um só corpo. E sejam agradecidos.” (Colossenses 3.15, NVI).
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Não vou fazer suspense e vou logo dizer que a interpretação correta é essa segunda, ou seja, a paz que deve funcionar como juíza em nosso coração é a paz entre os irmãos em Cristo Jesus. Antes de apresentar os argumentos para essa última interpretação, vamos lidar um pouco com o texto grego.
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O TEXTO GREGO

Tanto a NTLH quanto a NVI apresentam uma versão interpretada (dinâmica) do texto. Abaixo colocamos o texto grego e uma tradução bem literal:

καὶ ἡ εἰρήνη τοῦ Χριστοῦ βραβευέτω ἐν ταῖς καρδίαις ὑμῶν, εἰς ἣν καὶ ἐκλήθητε ἐν ἑνὶ σώματι καὶ εὐχάριστοι γίνεσθε (Colossenses 3.15, NA28).

E a paz de Cristo esteja sendo o juiz em os corações nossos, [paz] para a qual também fostes chamados (aoristo) em um corpo e agradecidos estejam sendo (minha tradução literal).

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A Almeida Revista e Atualizada apresenta uma versão bem próxima do texto grego (tradução formal): “Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos (Colossenses 3.15, ARA).
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O aspecto mais distintivo do texto grego é a palavra traduzida na ARA como “seja o árbitro”. É o verbo βραβεύω (brabeúo) , que aparece somente nesse texto em todo o Novo Testamento. A palavra significa “ser juiz, decidir, controlar, governar”. A origem da palavra está ligada aos árbitros dos jogos gregos que decidiam quem era o vencedor de uma disputa e consequentemente quem levaria o prêmio.
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A definição dessa palavra, no entanto, não nos ajuda a resolver o nosso problema. É a paz de Cristo que deve funcionar como juiz, árbitro, controladora, governante em nosso coração, mas a que paz o texto está se referindo, a uma paz subjetiva ou a uma paz comunitária? O restante desse artigo vai apresentar argumentos em prol da segunda interpretação.
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1 A referência que o versículo faz a um só corpo, aponta para a interpretação comunitária.

No texto grego a palavra “paz” aparece somente uma vez, mas existe um pronome relativo que faz referência a ela:

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Linha 1 E a paz de Cristo esteja sendo o juiz em os corações nossos,
Linha 2 [paz] para a qual também fostes chamados em um corpo
Linha 3 e agradecidos estejam sendo. (minha tradução literal)
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Na segunda linha, Paulo afirma que nós fomos chamados para a paz e isso em um só corpo. Qual é essa paz que se evidencia na unidade do corpo de Cristo? É evidente que é a paz comunitária. A ideia do texto, portanto, é: já que fomos chamados para viver em paz como corpo de Cristo, então, que essa paz comunitária seja aquilo que nos ajuda a tomar as nossas decisões. Se você percebe que uma atitude, palavra, comentário com alguém ou expressão facial não vão contribuir para a paz, então você deve refrear-se de agir daquela forma.
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2 As outras referências à paz em Colossenses apontam para a interpretação comunitária.

Colossenses tem duas outras referências a paz. A primeira é na saudação de Colossenses 1.2: “aos santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai“. Essa última expressão é clássica em Paulo e é a maneira que o apóstolo dos gentios usa para resumir toda a sua teologia: É a graça de Deus que nos proporciona paz com Deus (reconciliação) e paz com os irmãos (comunhão).

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A segunda referência que existe à paz está em Colossenses 1.20-21: “e que, havendo feito a paz (εἰρηνοποιήσας) pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas” (Colossenses 1:20‭-‬21, ARA). Nesse texto, Jesus é aquele que fez a paz. O foco aqui não é a paz comunitária, mas a reconciliação entre Deus e os homens e a reconciliação de todas as coisas da criação com Deus por causa de Cristo. Embora não seja o sentido comunitário que se tem primariamente em vista aqui, este está muito mais próximo do texto do que o sentido subjetivo de tranquilidade no coração para tomar uma decisão.
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Note que esses dois versículos nos ajudam a entender o porquê Paulo chama fala que a “paz de Cristo” deve ser a juíza em nossos corações. Jesus é aquele que possibilita que seres humanos distintos vivam em paz uns com os outros como Corpo de Cristo, pois ele os reconciliou com Deus, reconciliou o cosmos com Deus e os reconcilia uns com os outros.
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3 O contexto próximo do texto aponta para a interpretação comunitária.

Não vou elaborar muito esse ponto, pois acredito que a leitura do texto o tornará explícito. Ao ler o contexto de Colossenses 3.15, qual interpretação faz mais sentido, a subjetiva ou a comunitária?

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Agora, porém, despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do vosso falar. Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; no qual não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos. Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade. Suportai-vos uns aos outros, perdoai-vos mutuamente, caso alguém tenha motivo de queixa contra outrem. Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós; acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo da perfeição. Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos. Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração. E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai. (Colossenses 3:8‭-‬17 ARA).
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Percebeu como o foco de todo o texto diz respeito aos relacionamentos dos colossenses? Isso deixa claro que a paz que Paulo quer que consideremos como fundamental para tomar uma decisão é a paz entre os irmãos!
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Conclusão e Aplicação

“Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração”! Vimos nesse artigo que esse texto NÃO está ensinando que devemos tomar decisões baseados em uma paz subjetiva que estejamos sentindo. Devemos lembrar que nossos corações são “desesperadamente corruptos” (Jeremias 17.9-10) e, portanto, o fato de estarmos em paz com nossa consciência absolutamente não significa que nossa decisão foi acertada.

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O texto está ensinando, em vez disso, que ao tomar uma decisão, escolher um curso de ação, escolher as palavras que vou usar, a maneira que vou usar as redes sociais, definir os pensamentos que vou permitir ficar na minha mente e os sentimentos que vão ficar em meu coração eu devo pensar na unidade da igreja, naquilo que vai promover a paz, tanto a minha paz com meus irmãos, quanto a paz dos meus irmãos entre si. Que assim Deus nos ajude!

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Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. (Mateus 5.9, ARA).
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[1] “βραβεύω (s. βραβεῖον) prim. ‘award prizes in contests’, then gener. be in control of someone’s activity by making a decision, be judge, decide, control, rule (BDAG)”. βραβεύω, f. σω, (βραβεύς) to act as a judge or umpire, Isocr.I I. c. acc. to arbitrate, decide on, τὰ δίκαια Dem.:—to direct, arrange, control, Anth. Henry George Lidell, An English-Greek Lexicon βραβεύω brabeúō; fut. brabeúso. To be a brabeús, an umpire, director or arbiter in the public Greek games. In the NT, to rule, govern, and metaphorically to prevail, abound. Used intrans. (Col. 3:15, “the peace of God rule in your hearts”). Spiros Zodhiates, The Complete Word Study Dictionary: New Testament.

5 thoughts on “Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração: Subjetivo ou Comunitário?”

  1. Muito elucidativo o seu texto. Que o Senhor Jesus continue lhe abençoando. Muito bom poder aprender através da leitura de artigo tão edificante.

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